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A Voz


Capítulo 1 - A VOZ

Retrospectiva histórica

A Grécia antiga.

Desde muito cedo, ao que parece, uma técnica vocal (e gestual) apropriada aos diversos gêneros foi elaborada. O ditirambo, por exemplo, mobilizava um coro de cerca de cinqüenta pessoas (homens e crianças) que praticavam a dança e o canto sem figurinos nem máscaras. O mesmo coro reaparece no drama satírico de tonalidade burlesca. Os coristas, agora usando figurinos e máscaras, falam, cantam, recitam e utilizam aparentemente todos os recursos cômicos da voz. Sabe-se também que a parábase da comédia (fala iniciai dirigida ao público) exigia dos coristas o domínio de sete técnicas vocais específicas entre as quais a da commation, breve abertura cantada, a dos anapestes, solo falado do Corifeu, a do pnigos, que era um amplo período dito sem tomar fôlego, provocando aparentemente um efeito de histeria cômica que reencontraremos, por exemplo, no galimatias medieval, nos discursos em linguagens incompreensíveis de Molière ou até mesmo nas tiradas mecânicas das primeiras peças de Ionesco. Como vemos nada de muito novo no panorama teatral! Por outro lado, pode-se supor que os episódios recorrentes de contestação (trágica ou cômica), as narrações (de batalha, de crime...) confiados ao personagem emblemático do Mensageiro, apresentam formas específicas de declamação. Que a fala tivesse um caráter ritualizado não há nisso nenhuma surpresa: o teatro, em Atenas, era inseparável do culto de Dionísio; os atores e coristas eram considerados sagrados...
Havia certos problemas específicos: a representação, como sabemos, acontecia ao ar livre. É verdade que, assim como prova o admirável teatro de Epidauro, a acústica havia alcançado surpreendente grau de perfeição. Mas é lícito perguntar se, considerando a própria massa, o público podia ouvir em silêncio atento às representações que começavam de madrugada e eram reiniciadas à tarde. Comia-se e bebia-se (vinho) nos degraus... Enfim, tudo faz supor que aquele público se parecia mais com o dos estádios, ou melhor, das touradas, do que com o dos teatros que conhecemos. Com seus momentos de participação intensa, com sua veemência, com suas distrações... É preciso, pois, lembrar-se que foi nessas condições materiais que a arte da declamação desenvolveu-se e, assim sendo, o recurso à máscara pode ser explicado pela necessidade, para o intérprete, de dispor de um utensílio que ampliasse a sua voz.
A arte da declamação stricto sensu não parece originalmente separada do domínio de técnicas aparentadas às do canto. O ator tem que usar três tipos de fala: a dicção falada ou catalogue, o canto propriamente dito ou meio e, intermediária entre estes dois modos, aparacataloguè, espécie de salmo agudo, rectotono, com acompanhamento de flauta. A partir de Eurípides, a declamação trágica se aperfeiçoa ou complica-se com sofisticadas vocalises que exigem o auxílio de um compositor profissional.
A cena trágica francesa. Nos séculos XVII e XVIII, segundo inúmeros testemunhos, vai-se facilmente ao teatro para chorar. No século XVII, são os papéis "ternos" (em oposição aos "furiosos") que suscitam a compaixão. O magnetismo do ator, a sua "presença", com certeza contribuem muito para essa mobilização afetiva. Presença física, mas também presença vocal, como testemunham os triunfos de Mille de Champmeslé, intérprete preferida de Racine. Um contemporâneo, o autor dos Entretiens Galans, observa que, quando essa ilustre atriz representava, "ficava-se compelido a derramar lágrimas, por maior que fosse a força de espírito de qualquer um e por mais que se lutasse contra si mesmo".
Com a repetição, certas situações se tornam estereótipos cuja eficácia emocional é comprovada. O intérprete precisará dominar a técnica vocal apropriada a essas situações e, em função de suas possibilidades, ele se especializará num ou noutro tipo de papel. Pois ele sabe que terá de mostrar sua capacidade em algumas cenas especiais: os debates políticos à maneira grandiloqüente de Corneille mobilizam o gênio oratório do ator: polêmica vocal, nobreza sustentada de entonação, convicção etc. As cenas de "reconhecimento" são feitas à base do patético da surpresa - suspiros, exclamações, gritos... Os episódios de "ternura" (confissão amorosa...) privilegiam os efeitos de timbre, a musicalidade da fala...
O risco é evidente: a recorrência às mesmas situações acarreta uma mecanização da interpretação. A declamação vai se tornar puro virtuosismo. A partir do século XVIII, o problema estará-colocado. O famoso culto da "sensibilidade" provoca uma tomada de consciência do fenômeno: a técnica vocal é ao mesmo tempo necessária e insuficiente. Em seu Cours de déclamation, Larive exige da atriz trágica um domínio perfeito da voz utilizada em seu registro médio com meios-tons para cima e para baixo. Ao mesmo tempo, diz ele, esta técnica de vocalização precisa ser avalizada por um compromisso pessoal irredutível com certas receitas. Pois, segundo ele, a declamação nada representa sem as lágrimas que devem surgir "naturalmente"...
Esta tomada de consciência é indissociável de uma queixa que vai então ser manifestada com crescente insistência: não existe ação na cena trágica, mas apenas "discurso" e "efeitos". Rousseau disse: "Habitualmente, tudo se passa com belos diálogos, bem escritos, bem bombásticos, em que se percebe antes de mais nada que a preocupação primordial de cada interlocutor consiste sempre em brilhar" (La Nouvelle Héloise, 1761).
Mas Rousseau é apenas o reflexo de uma desconfiança cada vez maior em relação a uma tradição cujo desgaste deixa patentes os seus artifícios. Melhor dizendo, naquilo que deslumbrava ou enternecia o seu avô, o espectador percebe agora o processo de fabricação. Ouçamos o modo irônico com que Favart nos fala do ator trágico do seu tempo: “Je prends une attitude, et fort bas je commence; Ma voix em même temps s'élève par éclats; Je balance le corps et [agite les bras (...) Tantôt de mes deux bras décrivant un ovale, J'en impose aux humains du ton sacré des róis, Etje mugis des vers, en étouffant ma voix”. (L'Acajou, 1741.) Por isso mesmo, quando, em 1773, Louis-Sébastien Mercier quer definir as condições de produção desse patético tão ao gosto do século XVIII, é sintomática a sua opção de privilegiar a parte propriamente física e mímica da interpretação em detrimento da tradição vocalizante: "Se você quiser me fazer ouvir os suspiros do infortunado, coloque-o debaixo dos meus olhos, a fim de que possa ver os trapos que o cobrem, ouvir os seus gemidos: o olhar sombrio, a palidez que cobre o seu corpo trêmulo, os cabelos que escondem a cabeça baixa, me ocultam o rosto de um irmão..." {Du Théâtre).
Talma (1763-1826) vai tentar regenerar a tradição do grande estilo declamatório, insuflando-lhe alguma coisa do patético tão em moda. Ele vai introduzir, na interpretação trágica, uma violência à flor da pele, contrastes exacerbados, e tentar arrebentar aquilo que as jovens gerações consideram agora como o ronrom acadêmico do gênero. Mme. de Staél escreveu, em 1810: "Ele se recusava a dobrar a sua dicção às servidões do alexandrino; ele não aceitava cantar sobre determinadas notas, rejeitava os cortes por demais simétricos, as necessidades da censura" {De L'Allemagne, II, cap. 27). Até mesmo as críticas que lhe são feitas pelos defensores da tradição reconhecem a sua preocupação em "patetizar" o personagem trágico para trazê-lo de volta à vida.
Ele grita, ele é natural "demais!”, diz Geoffroy. Nos "furores" de Orestes, ele faz grande sucesso mas "tem a extravagância de um louco de asilo"... Desde essa época, os termos de um debate fundamental estão colocados: será que a voz deve ser esse instrumento trabalhado, utensílio essencial senão único de um virtuose da declamação, meio de estilização deliberada? Será que, através de artifícios, ela deve se transformar em eco teatral dos artifícios formais encontrados no texto dramático? Ou será que, ao contrário, ela deve reproduzir mimeticamente a "vida", ser o reflexo de uma "realidade humana?” Mas, afinal de contas, talvez se trate apenas de um falso debate: os atores mais "realistas" não podem prescindir de uma técnica vocal elaborada; quanto aos "declamadores", eles não conseguem impor-se a não ser pela sensibilidade, pela precisão e autenticidade das suas interpretações. Mas esse debate nunca mais vai deixar de estar na ordem do dia...

A vocalidade contemporânea

As condições ideológicas e técnicas. Um dos paradoxos do teatro de hoje é certamente que o trabalho do ator, especialmente sobre a voz, permanece subordinado a uma mitologia do "natural", embora sua dimensão ideológica seja bem conhecida e sempre denunciada. Pois, na verdade, o que impressiona é exatamente o caráter "não natural" de uma dicção considerada originalmente como uma realização no caminho do mimetismo. É o que acontece, por exemplo, com a dicção parisiense dita boulevardière que Stanislavski, no final do século XIX, considerava como o cúmulo da precisão expressiva. Ora, em sua tonalidade levemente histérica (o ator de teatro de boulevard fala rápido e alto, como se temesse a toda hora que o ritmo e o interesse caiam por sua culpa!), cantante, afetada (os estereótipos do "chique" parisiense...), esta vocalidade nos parece, hoje, merecedora de descrição e análise históricas, produto de um sistema de valores (a "classe", a elegância, a distinção...) eles mesmos datados, e não mais, certamente, como modelo de "natural" e de fidelidade mimética ao real... Há muito tempo que os escritores recusaram esta ideologia. Gide escreveu, em 1902: "O grande erro dos atores, hoje em dia, quando representam Racine, consiste em tentar fazer triunfar o natural onde deveria triunfar a arte." Embora por motivos diferentes, teóricos e práticos como Craig, e depois Artaud e Brecht, também se tornarão seus acusadores. E, hoje em dia, de Roland Barthes a Giorgio Strehler, o caráter histórico, e consequenternente relativo, desta noção de "natural" (de "verdade") é mais ou menos reconhecido por todos:
"Cada ator, em cada época, se opõe ao ator que o precedeu e o 're-forma' na base da 'verdade5. O que era ou parecia simples vinte anos antes se torna retórico, enfático, vinte anos mais tarde. A coletividade emite julgamento segundo o critério de verdade do 'seu' momento histórico: quem se situa fora desse momento representa mal. Não existe, pois, verdade 'única' para o ator" (Giorgio Strehler, Un théâtre pour Ia vie, 1980, pg.154). E se é verdade que alguns dos melhores atores de hoje se conscientizaram desta historicidade e assumiram, conseqüentemente, uma atitude mais lúdica em relação a este condicionamento ideológico, é certo também que a categoria do "natural" continua sendo, para a maioria do público e para um grande número de profissionais, um dos critérios principais pelos quais avalia-se o trabalho do ator. Seria o caso de atribuir a essa ideologia um sensível declínio do domínio vocal nos dias de hoje? Realmente, ela contribuiu para tornar progressivamente desacreditada (pelo menos junto ao público) a arte da declamação. O aprendizado das técnicas de dicção, especialmente árido, também sofreu com esta desvalorização. Afinal de contas, o melhor meio de parecer "natural" não seria simplesmente falar no palco como na vida? Não se trata aqui, é bom ressaltar, de um julgamento que teria a ver com opções estéticas mais ou menos pessoais, mas da questão objetiva da técnica vocal. É óbvio, por exemplo, que certos atores de hoje têm freqüentemente dificuldades em "dizer" corretamente uma fala um pouco maior. Respirações mal colocadas, sílabas engolidas etc. são manifestações muito comuns. Pior ainda, o discurso, às vezes, não é audível o tempo todo. Domínio técnico deficiente, mas também fragilidade vocal: a voz precisa ser treinada como o músculo do atleta. Ela precisa se desenvolver em potência, aprender a resistir ao cansaço. Na falta de uma preparação adequada, a voz, muito cedo solicitada além das suas possibilidades, não possui mais o volume necessário para certos papéis. Muito rápido, rápido demais, o ator é obrigado a representar no limite dos seus meios. E não é só a clareza da elocução que sofre, mas também a interpretação em sua totalidade, na medida em que as melhores intenções, no teatro, se voltam contra o ator cujos recursos não têm o tamanho das suas ambições. As causas desta decadência? Antes de tudo, é preciso recusar a idéia excessivamente mecanicista segundo a qual o desenvolvimento de certo virtuosismo corporal que, veremos adiante, caracteriza a geração atual, só poderia se fazer em detrimento do domínio vocal. Mil exemplos demonstram o contrário...
Sem chegar a invocar o teatro chinês ou japonês, pode-se lembrar que a commedia dell'arte mobilizava atores que tanto tinham a capacidade de se transformar em bailarinos e acrobatas como em cantores ou declamadores. Mais perto de nós, a comédia musical americana alcançou o sucesso que se sabe graças ao triplo virtuosismo dos seus intérpretes que dançam, cantam e representam ao mesmo tempo. Enfim, a evolução recente da cena lírica provou que os maiores cantores podiam ser ao mesmo tempo excelentes atores (pensemos em Maria Callas, Tito Gobbi, Elisabeth Schwarzkopf, etc.). O último exemplo é particularmente sugestivo pelo fato de que o gênero lírico obriga o cantor a dominar uma técnica vocal infinitamente mais complexa do que a do ator.
Melhor seria alinhar aqui um conjunto de determinações ao mesmo tempo estéticas, técnicas e sociológicas:

1- Por motivos econômicos, o jovem ator nem sempre tem meios de realizar um treino em longo prazo e de qualidade.

2- A partir de 1968, começou a se realizar o sonho outrora formulado por Artaud de um teatro fora dos muros, completamente corta do da tradicional arquitetura dita "à italiana".

É nessa época que o Théâtre du Soleil instala-se nos galpões abandonados da Cartoucherie de Vincennes; Luca Ronconi apresenta o seu Orlando Furioso, hoje em dia histórico, num dos pavilhões metálicos de Baltard, nos Halles de Paris. E, muito recentemente, o De-Ilnferno de André Engel (1982) atraía o espectador para uma fábrica abandonada, transformada em labirinto aquático que ele explorava de barco!
O inconveniente desses novos locais de representação, ricos, outrossim, em extraordinárias potencialidades teatrais (cenografia de "geometria variável", relações "moduláveis" com o espectador...), é que a sua acústica é freqüentemente defeituosa. É preciso não esquecer que o arquiteto do palco à italiana levava em consideração os dois imperativos fundamentais do teatro, arquiteturalmente opostos, de uma visibilidade e de uma acústica igualmente perfeita. É por isso que, freqüentemente, é preciso debitar a um espaço não adaptado ao teatro certas falhas que tendemos a imputar ao ator. Mas seria necessário, pelo menos, que o ator tivesse consciência do problema e procurasse resolvê-lo. E coisa notória, por exemplo, que o pátio do palácio dos Papas, onde foram realizadas as primeiras representações do Festival de Avignon, e depois a imensa nave de Chaillot, apresentaram delicados problemas de acústica para o Théâtre National Populaire (TNP) de Vilar. Dessas dificuldades resultou uma maneira de declamar estilizada que fez sensação porque conciliava virtuosismo vocal e modernidade de interpretação. É verdade que os atores do TNP pertenciam a uma geração cujos mestres haviam conservado o culto do trabalho da voz: Vilar era aluno de Dullin, Gérard Philipe de Georges Le Roy. Quando Vitez aborda o problema da declamação trágica, por exemplo, não são os grandes órgãos dos monstros sagrados do início do século que constituem seu ponto de referência - a capacidade vocal dos intérpretes atuais seria, provavelmente, insuficiente - mas o próprio nascimento da dicção trágica do século XVII, limpa do pathos que havia sido, pouco a pouco, transformado em tradição. Uma volta, pois, a uma dicção cantada onde o timbre assume tanta importância quanto às inflexões, expressividade moderada e harmoniosa de acordo com a estética das "conveniências". É preciso salientar que este trabalho não deve ser considerado como uma volta ao "natural", mas pelo contrário, como uma abordagem dentro de uma perspectiva histórica: para um texto específico, há necessidade de uma dicção apropriada:
"Seremos implacáveis com o alexandrino. Havemos de nos exercitar na rejeição e na inversão sem jamais transgredir as leis da arquitetura prosódica. Nem pensar em representar o teatro de Racine tentando fugir ao problema do alexandrino. Racine, sem o verso, perde forma e sentido. Desperdício fatal! Permaneceria a intriga, funestamente alterada" (Antoine Vitez, Le Monde-Dimanche, 11/12 de outubro de 1981).

2- O aprendizado e o treinamento. Aprendizado de uma técnica, treinamento sistemático da voz, eis duas obrigações que se impõem ao ator; sobretudo porque a utilização das cordas vocais, da laringe etc., na realidade cotidiana, não corresponde às exigências específicas da comunicação teatral. Realmente, a "projeção" da voz, o seu alcance, a variedade das suas inflexões... São fatores determinantes no famoso fenômeno de "presença", tão importante no teatro. E esse fenômeno acontece, em parte, porque o espectador acha-se como atravessado pelas vibrações dessa voz...

Por outro lado, é essencial que o ator não trabalhe no máximo da sua potência vocal, a fim de não arriscar-se a desagradáveis acidentes de percurso. O treinamento assegura o desenvolvimento desta potência, que não lhe é necessariamente dado pela natureza. Também lhe confere o domínio dessa potência. E ensina a poupá-la para que seja capaz de sobreviver à prova da resistência representada pelo tamanho de um papel e suas exigências expressivas.
Terceiro objetivo deste trabalho: aprender a emitir sonoridades e inflexões que não pertencem aos hábitos cotidianos. O que quer dizer, no fundo, reencontrar a magia do canto ou do uso litúrgico da vocalização. Grotowski salientou o quanto essa magia, essa prática que o espectador sabe ser incapaz de reproduzir, é essencial ao prazer do teatro.
Deste treino complexo, só se poderia dar aqui uma idéia sucinta: trata-se, para o ator, de aprender a controlar a abertura da laringe, a circulação de ar nos órgãos da fonação, já que esta assegura a "projeção" da voz. Há muito, todos os artistas do palco vêm enfatizando a importância deste controle do sopro. A tal ponto que, para melhorá-lo, alguns pedagogos não hesitam, hoje em dia, em aumentar e renovar os métodos tradicionais. A escola americana encoraja o estudante de teatro a praticar o canto e a dança a nível profissional. Enquanto isso, Grotowski inspira-se na ioga ou em técnicas criadas pela tradição teatral chinesa.
Este controle não constitui apenas o fundamento do domínio vocal. Ele poderá reger até mesmo a estética da interpretação: seria possível dizer alexandrinos clássicos ou versetos de Claudel sem se dobrar ao ritmo específico que implicam, isto é, sem distribuir de modo harmonioso e rigoroso as pausas de voz necessárias à respiração. "O bom ator, diz Grotowski, respira em silêncio e rapidamente". São por demais numerosos os exemplos de atores que, por falta desse controle, perdem o fôlego a ponto de serem obrigados a introduzir, na fala, uma ruptura inadequada (o impulso do texto se perde) e/ou ilógica (não tem nenhuma legitimidade de sintaxe). Não há de ser por acaso que se exigia tradicionalmente que o jovem ator francês fosse capaz de dizer dois alexandrinos (vinte e quatro sílabas) sem retomar fôlego. Nada mais chocante, para o ouvido, do que esta respiração pequena, mecânica, que, sendo reproduzida a cada doze sílabas, confere ao verso clássico aquela música monótona e ronronante tão criticada. Nada mais chocante também do que as respirações barulhentas (mal controladas) que introduzem na música de um texto sonoridades parasitárias esquisitas. São estas as razões que fazem com que o controle do fôlego e a aquisição de uma respiração silenciosa sejam, no teatro, imperativos absolutos.
Enfim, os relaxamentos de ritmo que, às vezes, são percebidos no desenrolar de uma cena podem também originar-se num domínio respiratório deficiente. Sabemos, por exemplo, o quanto é importante em certos episódios cômicos, cuja eficácia depende de um ritmo certo, que o ator que "ouve" tome fôlego antes que termine a fala do seu parceiro a fim de poder responder imediatamente. Se esperar para respirar no momento em que o companheiro lhe "der a deixa", ele introduzirá no diálogo um minúsculo silêncio que, principalmente se for repetido, acarretará uma defasagem, uma perda de ritmo nefasta para o impacto cômico. Os intérpretes de Feydeau que o digam!
Um bom ator dispõe de várias "vozes". A teoria grotowskiana dos "ressoadores" não tem nenhuma validade científica. Ela traduz de modo metafórico, uma realidade de experiência: o ator tem a sensação de que, de acordo com o impulso dado à coluna de ar que ele inspira ou expira, a sua voz passa por uma determinada parte do seu corpo que age como um amplificador e como um fator de colorido. Existiria um número mais ou menos ilimitado de ressoadores. A sua utilização dependeria do controle que o ator é capaz de exercer sobre o seu organismo. Na terminologia grotowskiana, os principais e os mais freqüentemente utilizados são:

- o ressoador superior ou craniano: na prática ocidental, é o mais familiar; ele governa o registro agudo da voz e produz o que é chamado, no jargão do teatro, a voz "de máscara";
- o ressoador peitoral: corresponde ao registro grave da voz;
- o ressoador nasal: observemos que a maior parte das escolas de atores considera a voz anasalada como defeituosa e procura eliminá-la;
- o ressoador laríngeo, utilizado, por exemplo, no teatro japonês: produz uma voz rouca, gritada, freqüentemente sincopada; - o ressoador occipital: constitui o trampolim de um registro superagudo freqüentemente observado no teatro chinês. Uma das singularidades do teatro contemporâneo reside em ter (re)descoberto esta vocalidade plural que a tradição psicologizante e mimética explorou muito pouco. Do domínio técnico à invenção criadora. O trabalho da voz precisa resultar num domínio de tal ordem que a sua utilização pareça ao mesmo tempo totalmente espontânea e inteiramente submissa às exigências do papel. Em outras palavras, o ator precisa enfrentar o seguinte paradoxo: na representação mimética, uma recitação rigorosamente calculada constitui ao mesmo tempo um objetivo a ser atingido e uma impossibilidade estética. Pois a voz precisa traduzir espontaneamente reações espontâneas, e é só assim que o personagem ganha existência.

É preciso reconhecer que, sob esse aspecto, certas falhas técnicas podem, eventualmente, adquirir uma indiscutível eficácia dramática. Seria absurdo excluir dogmaticamente as falas que se aceleram sob o efeito da emoção, as forças vocais momentaneamente quebradas pela tensão... A dicção, a priori defeituosa - sincopada, seca, monótona, - de Jouvet tornou-se, como sabemos, uma das características principais da sua personalidade de ator e talvez da modernidade das suas interpretações. E os puristas não deixavam de recriminar Vilar por "despejar" seu texto, isto é, dizê-lo de maneira corrida e inexpressiva, quando ele estava cansado. Acontece que, embora se tratando de um defeito, do ponto de vista acadêmico, o público desprevenido e pouco atento a essas questões de técnica ortodoxa não deixava de perceber a força e a beleza da declamação estilizada que Vilar extraía do seu "defeito".
Os exercícios de escola têm igualmente a função de desenvolver a variedade dos registros e o mimetismo vocal. Para os profanos, pode parecer incongruente pedir ao aluno que reproduza ruídos naturais (cantos de pássaros, por exemplo) ou mecânicos (roncos de motores). É porque o teatro gosta de brincar com a identidade dos personagens, e conseqüentemente com as vozes e os sotaques.
O Escapino de Molière, na famosa cena do "saco", precisa ser ao mesmo tempo, ele mesmo e o "Gascão" ou o "Suíço" que ele finge ser para Géronte. O final da cena, sob esse aspecto, é imperativo: "ele imita várias pessoas ao mesmo tempo", especifica Molière quando Escapino anuncia a chegada "de uma meia dúzia de soldados". É evidente a dificuldade: ou o autor possui o virtuosismo necessário para representar simultaneamente seis vozes diferentes da sua, e a cena termina em fogo de artifício, ou ele não tem essa capacidade, e toda a dinâmica cômica da cena deixa de funcionar. Problema análogo acontece no último ato de Bodas de Fígaro, de Beaumarchais, quando o sabor da peça depende da capacidade das intérpretes da condessa e de Suzanne de reproduzirem cada uma o timbre e as inflexões da outra...
A dicção e a articulação precisam ser diferenciadas. A primeira permite ao ator fazer ouvir completamente e entender materialmente o discurso do seu personagem. As necessidades da dicção submetem a voz a um tratamento que a torna mais ou menos artificial em relação ao que ela é na realidade (vogais "expelidas", consoantes "mastigadas", palavras fragmentadas por sílabas etc.). No teatro, uma boa dicção não é necessariamente uma elocução viva, mas a articulação ajuda a transpor esse obstáculo. A articulação é uma técnica de expressão. Melhor seria, aliás, falar de modos específicos de articulação, pois não há dúvida de que a voz de um personagem se define por uma pluralidade de articulações determinadas por vários fatores: idade, temperamento, situação social etc. Um mesmo papel poderá exigir que se recorra a vários modos de articulação no decorrer da representação. É o caso, por exemplo, dos personagens cuja vida inteira é re-tratada pela peça: o Peer Gynt, de Ibsen, por exemplo, ou o Galileu, de Brecht.
O trabalho da articulação justifica certos exercícios de escola como a paródia de personagens célebres, a sugestão vocal de certos tipos humanos (o hipócrita, o ciumento, o tímido etc.).
A problemática da articulação talvez esclareça a famosa oposição entre "comediante" e "ator", que Diderot formulava em seu Paradoxo do comediante: o "comediante", camaleão frio e calculado, capaz de encarnar os mais opostos personagens, seria aquele possuidor da mais rica técnica de articulação. Esta técnica permite que, a cada vez, ele seja diferente de si mesmo, e cada vez completamente outro. O "ator", em comparação, que representa com a "alma" e insufla em seus personagens o seu próprio temperamento, disporia de uma técnica de articulação menos requintada e desenvolveria a sua personalidade de intérprete por outros meios...
O ator também precisa saber modular a sua voz e controlar a sua colocação assim como suas descolocações. Na tradição ocidental, como já dissemos aqui, a voz se coloca principalmente "na máscara", o que permite melhor desenvolvimento de sua potência, flexibilidade e "projeção". Mas um bom ator deve também ser capaz de "deslocar" voluntariamente a sua voz, o que significa passar sem dificuldade de um sistema de ressonância a outro. Não se trata de simples busca de virtuosismo. O teatro ocidental procura "reproduzir a vida" e, como é fácil observar, "na vida", espontaneamente, inconscientemente, os indivíduos "descolocam" a sua voz conforme as situações, as emoções... "A voz, diz Jean-Louis Barrault, parece 'cair na garganta' sob o efeito do desejo amoroso (a voz adquire um timbre especifico); sob o efeito do medo, ao contrário, ela se abre e vibra particularmente no nariz; nas falas autoritárias, ela utiliza, de preferência, o palato etc." (Mise en scène de Phèdre p. 59). O teatro dos últimos anos tem procurado verificar algumas hipóteses formuladas, desde o início deste século, por teóricos como Craig e, mais tarde, Artaud. A voz do ator ocidental consignavam eles, possui potencialidades que a tradição mimética não utilizou, e que poderiam ser colocadas a serviço de um teatro novo. Nos anos 30, Artaud sonhava tratar a voz do ator como um instrumento de música. Ele lamentava que a tradição ocidental a tivesse praticamente atrofiado. Na França, os atores "nada mais sabem a não ser falar"; "esqueceram-se de como usar a sua garganta" (O teatro e seu duplo). Segundo ele, a voz não deveria ser reduzida a simples veículo de sentimentos ou idéias. É necessário utilizá-la em sua plenitude física, como um órgão dotado de poder de comunicação e perturbação independente da mensagem que enuncia, e é nisso que reside a sua eminente teatralidade. "Abandonando as utilizações ocidentais da palavra, ela [a linguagem de teatro] faz sortilégios com as palavras. Ela empurra a voz. Utiliza vibrações e qualidades da voz. Marca ritmos alucinados. Martela sons. Procura exaltar, entorpecer, encantar, estancar a sensibilidade." (Op. c/Y., "Le Théâtre de Ia Cruauté, premier manifeste"). O teatro de vanguarda nos Estados Unidos, as pesquisas de Grotowski, todas as experiências que a França descobre nos anos de 1965 a 1970, vão incitar os jovens atores, estimulados por certos diretores (Jean-Marie Patte, Michel Hermon, etc.), a aprofundar, neste sentido, o trabalho da voz. Basta citar algumas das realizações que, neste plano, causaram impacto e se tornaram marcos na transformação da arte do ator na França: espetáculos do Living Theatre (The Brig, Frankenstein, Paradise Now...), do Teatro Laboratório de Wroclaw (O Príncipe Constante, Akropolis), As criadas de Genet nas encenações tão diferentes entre si como as de Victor Garcia e Jean-Marie Patte, etc.
Mais recentemente, o trabalho de vocalização inspirado no Théâtre du Soleil pela tradição japonesa (nô, kabuki...) para Ricardo II e Henrique IV de Shakespeare (1982-1984) pode ser situado neste movimento de ruptura com o detalhismo psicológico francês e de ressurgimento dos poderes físicos da voz. A vocalidade dos anos 80 tende assim a revalorizar o virtuosismo. Ela devolve o prestígio à arte da declamação até então esquecida ou desacreditada, com os refinamentos técnicos em que implica: dizer um texto "crescendo" ou "diminuendo", destacar as sílabas "staccato" ou fundi-las num só jato ("legato"), exige um perfeito controle da emissão e da respiração e aproxima o trabalho do ator do processo do cantor. Há, neste plano, uma convergência entre a vontade de reativar uma tradição de prestígio e a ambição pós-artaudiana de inventar um teatro que atire o espectador "como num turbilhão de forças superiores". Os dois projetos se apóiam num virtuosismo vocal irretocável pois a presença da magia pressupõe a perfeição da técnica. Na tela (cinema ou televisão), o problema da voz deve ser tratado e solucionado pelo ator em termos completamente diferentes. E isto por, no mínimo, cinco razões:

1- Não existe propriamente um texto de cinema, como se define um texto de teatro: os diálogos estão estreitamente integrados à imagem, à direção. Fora delas, salvo raríssimas exceções "literárias" (Marguerite Duras, por exemplo), eles não têm vida. A prova é que jamais se faz um novo filme a partir de um mesmo roteiro e diálogo (cada nova realização cinematográfica de uma determinada história baseia-se sempre num novo roteiro e em novos diálogos). No teatro, ao contrário, é um mesmo texto que dá origem a uma infinidade de encenações e interpretações diferentes.

2- A organização material da filmagem impõe a necessidade de fragmentar o diálogo em função de exigências (cronograma, locações etc.) que não têm nada a ver com a continuidade da ação. Seria por tanto difícil conceber um verdadeiro trabalho de voz se o ator está condenado a dizer, a cada tomada, algumas réplicas isoladas de seu contexto dramático.

3- As práticas quase que exclusivamente miméticas do cinema fazem com que o predomínio do "natural" na interpretação imponha um "natural" correspondente da dicção e da vocalização. Com exceção de algumas pesquisas vanguardistas, Eisenstein, Robert Bresson, Marguerite Duras etc, a vocalidade cinematográfica exclui qualquer estilizaçao diferente da que remete às maneiras de ser
contemporâneas. Mas estas maneiras de ser, convenhamos, são frequentemente moldadas ao estilo dos astros mais populares: Jean Gabin, James Dean, Brigitte Bardot... No fim, não se sabe muito bem se é o cinema que imita a "natureza" ou a "natureza" que imita por sua vez o cinema!

4- As técnicas muito elaboradas de gravação de som fazem com que o trabalho de voz escape em parte ao controle do ator. Isto se aplica particularmente ao caso da pós-sincronização, mesmo quando, como acontece na Itália, o ator grava (ou regrava) sua própria voz depois da filmagem.

5- A gravação de som permite ou impõe um trabalho de voz de menor complexidade do que em teatro. No caso, a banalidade e a rotina são antes trunfos do que defeitos, e o são tanto mais quanto mais plenamente forem reconstituídas pela gravação. Assim o ator não precisa mais dominar, como no teatro, o problema da distância que o separa do espectador nem o da acústica da sala. São os técnicos que organizam e estruturam seu "espaço". Tudo, até o mínimo suspiro, é para ele meio de expressão, e ele deve se colocar sempre a questão do excesso, mais que a da insuficiência: esta entonação que nem mesmo se ouviria em cena, ouve-se, contudo demais na tela, e o que no teatro passaria por sobriedade vira canastrice no cinema!

Contudo, neste contexto específico, alguns grandes atores impuseram-se por uma presença vocal que reforça a presença de sua imagem e é reforçada por esta. Mas esta presença deve-se essencialmente às qualidades singulares e imediatamente reconhecíveis de um timbre ou de uma maneira de falar: a voz grave e rouca de Marlene Dietrich, as entonações veladas e anasaladas de Gérard Philipe. Certas particularidades da dicção vêm realçar a força expressiva ou a sedução do timbre: é o efeito inimitável de Arletty, apoiado numa dicção arrastada e anasalada e num timbre de grande sensualidade; do mesmo modo que a dicção trêmula de Michel Simon convinha perfeitamente a seu timbre áspero...
É certo que o cinema reproduz, e por vezes exalta, particularidades vocais que, como o olhar e o sorriso, definem a imagem do ator, enquanto o teatro se apóia num trabalho de estilização e de transformação da voz natural.