MENU

O Corpo


Capítulo 3 - O CORPO

O treinamento do corpo.

Assim como a voz, o corpo não é por natureza teatral. Ele precisa aprender a se movimentar, e mesmo a "estar", no espaço artificial que é o palco. É necessário tomar consciência de todos os tipos de parâmetros como a área da representação, a posição dos companheiros, a cenografia, as luzes etc. Os atores experientes sabem o quanto o problema do percurso, por exemplo, é difícil de dominar, notadamente quando a área de representação excede as dimensões habituais do palco italiano. Basta que um ator se mova um pouco mais lentamente para que o tempo da ação fique comprometido. Basta que ele se mostre agitado para que o seu personagem perca alguma credibilidade... No palco de Avignon ou na imensa cena do Chaillot, os atores do TNP, sob a direção de Vilar, aprenderam que não era suficiente se deslocar em cena conforme as exigências de seus papéis: era preciso, além disso, que seus corpos soubessem enfrentar um espaço que os esmagava.
Por outro lado, o corpo é o lugar de um conjunto de resistências: resistências físicas das articulações, da musculatura, da coluna vertebral... Decorrentes da falta de treinamento do ator, mas também resistências físicas que seu inconsciente pode opor às exigências da exibição teatral. As primeiras são às vezes um sintoma das segundas. Então, só um trabalho psicológico permite a superação destas inibições.
É, pois importante que, por uma ação permanente sobre si mesmo, o ator aprenda a conhecer seu corpo como se explora um território, ou antes, como se observa o comportamento e as reações de um alter ego. Toda a escola stanislavskiana insistiu com perseverança neste ponto: a "teatralização" do corpo exige mais que a simples repetição do treinamento atlético. Os exercícios físicos podem fortalecer a musculatura e torná-la flexível, dar ao ator um perfeito controle de seu corpo e, portanto, um virtuosismo; não bastam, entretanto, para tornar esse corpo teatralmente "falante" e "presente", a não ser, talvez, num teatro de tipo meyerholdiano. De fato, o paradoxo deste treinamento corporal é que ele deve ser ao mesmo tempo uma ginástica do imaginário e uma auto-análise...
A importância dessas interações entre o corpo e o psiquismo explica que os exercícios mais úteis visem a colocar o corpo em um sistema metafórico que provoque a imaginação. Ali onde o atleta efetua um salto sobre um obstáculo real, se equilibra sobre um ombro e se levanta no mesmo impulso, o ator deverá executar tarefas idênticas imaginando que e' um tigre saltando sobre uma presa... Para ele, trata-se ao mesmo tempo de dominar a complexa maquinaria de nervos e músculos que constitui seu corpo, e também de fazê-lo "falar".
Outros exercícios visam a desenvolver a expressividade do corpo reagindo ao seu meio ambiente. Por exemplo, o ator, descalço, deverá andar imaginando "seu"
chão: declive escorregadio ou areia quente, lodo viscoso ou pedras pontiagudas etc. Os pés, e por conseguinte todo o corpo, deverão sugerir as dificuldades inerentes à relação física do indivíduo com um espaço sob diversos aspectos hostil. Segundo Grotowski, não há emoção que não possa ser expressa com um treinamento apropriado do corpo. Através do autocontrole e concentração, diz ele, o ator pode ser capaz de fazer com que suas mãos "riam", que seus pés "chorem", que seu abdome "exulte"!

2- A presença do corpo. Antes mesmo que qualquer trabalho interpretativo comece, o corpo, tanto em cena como na tela, é o mediador de uma "presença". Um personagem entra em cena. Conforme o "corpo" de que ele é dotado, antes mesmo de ter aberto a boca, este personagem tem ou não tem "presença". No primeiro caso, sua corpulência, a maneira de jogar sua barriga para a frente ou enterrar a cabeça entre os ombros me "falam" tanto quanto seu discurso; no segundo, eu o percebo como uma silhueta chapada e neutra. Os atores cômicos, particularmente, têm uma consciência aguda desta necessidade de ser antes de tudo um corpo singular. Isto é tão válido para um Dario Fo de hoje como o foi ontem para um Chaplin ou um Buster Keaton, e outrora para os atores de farsa franceses ou os comediantes deli' arte. Sem dúvida, o desenvolvimento do cinema reforçou, no espírito do público, a noção da importância do físico do ator. Mas, no teatro, esta importância não se baseia, como muitas vezes se supõe, em uma semelhança naturalista entre o corpo do ator e aquele que ele empresta ao personagem. Afinal, a maioria dos papéis jamais são caracterizados fisicamente com muita precisão. Essa importância provém, antes, do vínculo inconsciente que une o espectador ao ator precisamente pela mediação deste corpo que a cena (figurino, luzes etc.) exibe e exalta. Daí a possibilidade paradoxal do teatro de encarnar um mesmo personagem nos físicos mais diferentes. Tartufo, garante Dori-ne: "Ah! melhor não teria passado:
Forte, gordo, loução, satisfeito e corado." Por muito tempo tomou-se a fala da criada ao pé da letra. Daí estas estirpes de Tartufos barrigudos, vermelhos... Até aquele dia de 1950 em que Jouvet lhe impôs sua magreza ascética! Além disso, a diversidade das encarnações propriamente físicas expressa também a evolução do gosto. Os cânones da beleza, por exemplo, mudam de uma geração para outra. A atriz que hoje imaginamos para Julieta talvez, em outros tempos, fosse escalada para um papel de criada!
Tradução de Guilherme Figueiredo.

O sonho teatral visa a se materializar em uma corporalidade. Sonho do espectador, certamente, mas também sonho do diretor. Este último precisa concretizar o fluxo de imagens e fantasmas sem os quais, sem dúvida, ele jamais teria experimentado profundamente o desejo de transformar um texto em espetáculo. O dramaturgo lhe oferece uma situação, alguns traços característicos... Cabe a ele fazer o resto!
Jouvet, ainda a propósito de Tartufo, lembra com ironia o quanto pode ser rica esta relação imaginária com um personagem clássico do repertório: "... Existem as testemunhas oculares, aqueles que viram: 'é um homem gordo, de bela estatura, de boa .fisionomia e muito agradável'. (...) 'Sim, sim! diz um outro, 'mas Tartufo tem a unha imunda e a face sanguínea, ele é transbordante de força, tem um queixo de lobo, uma cara grosseiramente esculpida, mãos de camponês, pele escurecida pela vida ao ar livre."
'Não foi assim que eu o vi' declara um outro. 'Tartufo tinha um aspecto agradável, a tez fresca, a orelha vermelha, as mãos belas e grandes, com um começo de gordura..." (Témoignages sur le théâtre, pg.79).
E eis como, de saída, Jean-Louis Barrault, diretor de Fedra, "sonha" com o personagem Hipólito:
"Hipólito é o mais belo mancebo da Grécia. Seus músculos são seu figurino. Eles devem ser fortes e harmoniosos. É fundamental que se destaque em Hipólito uma jovem e vigorosa virilidade. Hipólito é o mais belo cavalo de Tresena. Seu pêlo é louro, de um louro quente..." (Mise en scène de Phèdre, pg.67).
Nada, no texto de Racine, ou no protocolo da representação trágica do século XVII, permite dar a este retrato uma legitimidade objetiva. Contudo, nada mais legítimo, já que necessário à invenção do diretor e já que se trata não de uma reconstituição arqueológica, mas de uma representação destinada a uma determinada geração de espectadores. Representar não é justamente tornar "presente" outra vez?
O teatro sempre conheceu empírica e intuitivamente o poder inconsciente do corpo do ator. Já no Império Romano, Juvenal fulminava: "Quando, com gestos lascivos, Batila se põe a dançar, Tussia não é mais dona dos seus sentidos; Apula exala de repente longos suspiros chorosos como num abraço amoroso" (Satires). Tal poder sempre foi denunciado, repelido e censurado pela instituição, tanto é verdade que a Lei percebe sempre o Desejo como uma ameaça contra a ordem de que ela é guardiã. Em 1558, Sixto-Quinto proíbe os comediantes dell'arte de incluírem mulheres nos seus elencos. Em 1577, o Parlamento de Paris acusa as atrizes de se vestirem e se despirem em cena e de se tornarem, ao fazê-lo, "um ensinamento de luxúria e adultério"...
A verdadeira novidade na França, a partir de 1965, é que os poderes do corpo em cena se vêem reconhecidos, assumidos, proclamados e deliberadamente explorados. De fato, não se trata mais de exercer, pela exibição do corpo, um fascínio mais ou menos explicitamente erótico sobre o espectador, mas de assumir esta revelação freudiana: o corpo tem alguma coisa a dizer; ele é uma outra palavra. Este é o sentido das proclamações artaudianas e das práticas que, no momento, escandalizam os defensores exaltados da Moral - como se pode ver, na época, com as reações histéricas (e às vezes policiais) suscitadas pelos espetáculos do Living Theatre. É neste contexto que se colocam as pesquisas sistematicamente conduzidas, fora do caos ocidental, no Teatro Laboratório de Wroclaw, por Jerzy Grotowski e sua equipe. O ator grotowskiano, por um processo de despojamento rigoroso, deve renunciar a todos os artifícios tradicionais que dissimulam ou transformam seu corpo (maquiagem, apliques, iluminações que favorecem a imagem dos atores, guarda-roupa elegante etc.). Deve-se encontrar só, e como que psicologicamente desnudado, face a um espectador que ele reveste de sua realidade carnal. Não apenas o olhar, mas o hálito, o suor... Tornam-se meios de comunicação, ou antes, para empregar a terminologia grotowskiana, de "retirada dos véus". A questão do "contato", à qual voltaremos, é aqui crucial. Os dois corpos, os dois organismos, devem se reunir em uma fusão (às vezes conflituosa) que transforma o próprio espaço do ato teatral. Grotowski, com efeito, suprime toda distância entre o ator e o espectador, ou pelo menos elimina o palco tradicional. O que há de mais violento, diz ele, deve se representar face a face, o espectador deve estar ao alcance da mão do ator!... Experiência pioneira que, sem dúvida, só podia se tornar insípida e se desfigurar ao emigrar para toda parte, para fora de seu lugar de origem, "recuperada" por um certo modismo teatral. Ainda assim, de uma maneira ou de outra, ela terá fecundado o teatro de hoje conferindo aos diretores um olhar novo sobre os recursos do corpo, e aos atores uma consciência renovada da relação que eles mantêm com este instrumento.
Outra referência importante: Dario Fo. Como italiano, ele explora a teatralidade do corpo à maneira dos comediantes dell'arte, sendo ao mesmo tempo um e mil corpos diferentes. Representa tão bem com sua pura presença física quanto com seu virtuosismo gestual e seu poder de sugestão e metamorfose. É capaz de ser alternadamente ele mesmo, narrador, comentarista da ação e todos os personagens de que precisar! Fo representa, pode-se dizer de corpo nu: tal como o ator grotowskiano, ele abre mão de todos os acessórios e artifícios tradicionais. Ele nem ao menos se permite o benefício da continuidade. Ao invés de se fechar em um só papel, ele vai de um a outro ao longo de uma mesma representação. Fluido como um camaleão. Homem-teatro, como já se havia dito de Artaud, uma vez que sozinho, com a ajuda apenas de seu corpo e de sua voz, ele é um espetáculo "em cem atos diferentes".
"Ele não perde tempo com detalhismos. Nada de caretas, é claro, nada de disfarces, quase nada de jogos de fisionomia. É com um gesto, uma inflexão da voz, que ele indica um personagem e depois outro, com uma colocação sumária no espaço. E o que ele faz não é outra coisa senão correr de um gesto a outro, lançando-os no ar, um de cada vez, para os apanhar e os relançar de novo. Ele faz malabarismos com os gestos da mesma forma como os faz com as inflexões" (Bernard Dort, Théâtre enjeu, 1974, pg.208).
Num teatro como este, a exaltação do corpo, sua ubiqüidade, permitem uma utilização renovada e enriquecida da palavra: ela não é mais apenas veículo do discurso dos personagens, ela se torna, simultaneamente, explicação, comentário, voz anônima e irônica... Através dela, o personagem que surge instantaneamente a partir da imagem física do ator é de imediato situado numa perspectiva (histórica, política, social...). Representação profundamente "épica", como ob-serva com precisão Bernard Dort.
O exemplo de Dario Fo mostra o seguinte: a restauração da dignidade do corpo no teatro, a exploração de suas potencialidades, tornam caduca, ou ao menos recolocam na sua relatividade histórica, a oposição entre Artaud e Brecht, que durante algum tempo parecia irremediável. Tanto para um como para outro, existe pelo menos este lugar de convergência: o corpo. Pois, seja ele "artaudiano" ou "brechtiano", o corpo, no teatro, não pára de "falar" e de nos dizer coisas importantes. Ainda que, dependendo da corrente de representação adotada, ele não as diga absolutamente da mesma maneira...

3- A palavra do corpo. O corpo teatral pode exprimir-se segundo duas modalidades antagônicas:

1- O corpo é reduzido, sistematicamente, a ele mesmo. Abrindo mão da facilidade do instrumento de ilusão, quer dizer, do figurino, do aplique, da maquiagem, o ator faz de seu corpo um corcunda, um velho, e até mesmo um cavalo... Trata-se de uma forma de ascese, uma vontade de reconduzir o teatro ao essencial: diante de um espectador, um ator entregue aos seus recursos reais.

2- Desde sempre, o ator procurou os meios de amplificar e melhorar sua expressividade corporal. O famoso coturno, que aparece na época helênica, contribui para aumentar a estatura, mas também para deslocar o centro de gravidade do corpo do intérprete, para modificar seu andar natural. Ele acentua, pois, o efeito de estranhamento produzido pela máscara, já que outros artifícios são usados com a mesma finalidade. Bem entendido, os acessórios, a maquiagem, os apliques e os figurinos não são paliativos, mas instrumentos. Eles pressupõem um know-how do ator. Não basta coroar a cabeça de uma atriz para que ela se torne majestosa, e, como se sabe, a corcova não faz o corcunda! Já vimos que a questão do físico do ator é um falso problema, ou melhor, um problema mal colocado pela ideologia dominante do "natural". O cinema fez com que não admitíssemos mais, hoje, uma Celimena, jovem viúva de 20 anos, representada por uma atriz quinquagenária. Porém, foi mais ou menos nesta idade que Madeleine Renaud interpretou o papel e o fez maravilhosamente. Costuma-se esquecer facilmente que o palco deveria ser o lugar mágico onde, a exemplo do teatro japonês, o velho representaria meninas ou a atriz faria o papel dos velhos, num perfeito domínio da sua respectiva corporalidade. A tradição japonesa admite estas práticas não realistas já que dinastias de atores herdam uns dos outros determinados tipos de papéis, bem como os segredos técnicos e artísticos que permitirão a um homem representar, até sua aposentadoria ou até sua morte, uma frágil noiva. E, nas companhias de commedia dell'arte, era comum que os papéis de velhos (Cassandra, Pantaleão etc.) fossem atribuídos a atores de 20 anos cujo corpo imitava a silhueta curva, o andar cansado e outras características ou símbolos da idade avançada. Por fim, a cena elisabetana não parece ter sofrido por fazer com que atores adolescentes, não necessariamente afeminados, representassem Ofélia ou Cordélia!

Sem dúvida, os profissionais têm desta "verdade" do teatro, uma consciência mais clara e mais nostálgica que o público. O poder do disfarce e, num sentido mais amplo, o dom da metamorfose são de fato componentes essenciais da arte do ator. A tradição cômica explorou constantemente os recursos dramatúrgicos e espetaculares da metamorfose. E algumas vezes atingiu por este caminho picos de virtuosismo. Um roteiro da commedia dell'arte nos dá um impressionante exemplo: Arlequim está vestido de homem na frente e de mulher nas costas! O cenário representa duas lojas contíguas, a de um bar e a de uma lavanderia. Está claro que Arlequim será alternadamente o dono do bar e a lavadeira! Toda dificuldade consistirá para o ator em ir de uma loja à outra girando tão rápida e precisamente sobre seu próprio eixo que os espectadores terão logo a ilusão de se tratar ora de um homem ora de uma mulher. Efeito duplo, totalmente não realista, totalmente burlesco, que permitia, supomos, todos os tipos de lazzi...
Isto nos leva à questão do figurino. Originalmente, tal "instrumento" parece depender da arte do figurinista (que o desenha) ou do diretor (que o concebe). Todavia, na medida em que ele é parte integrante do corpo do ator, entra no campo da sua prática.
O figurino intervém, neste sentido, como um instrumento de deformação e de transformação do físico. A coroa, o pesado manto real, darão a este ator que, na rua, anda como você e eu, um porte hierático e um passo majestoso. É claro que este fenômeno não é nem simples nem mecânico. O que transforma o ator, de fato, é simultaneamente a roupa e a consciência de representar um personagem nobre. É freqüente que, nos ensaios, o ator use panos e objetos improvisados que terão uma semelhança muito vaga com o figurino previsto. O que não diminuirá o objetivo de ajudar o ator a aprumar-se no porte exigido. Os atores bem sabem o quanto lhes pode valer um figurino bem-concebido e, ao contrário, que entraves podem surgir de uma vestimenta inadequada. Porque ela é como que o prolongamento do corpo, e até mesmo da própria personalidade do ator. É uma espécie de trampolim que permite "projetar" eficazmente o seu personagem. Idealmente, o figurino deve ser determinado em função da ação, do personagem, da direção... Mas também do ator que vai usá-lo. León Gischia, que foi o cenógrafo titular de Vilar, frisa que os desenhos devem ser feitos tendo em vista o ator:
"Cada um tem uma arquitetura, e, sobretudo sua psicologia - e o figurino tem que se encarregar de parte dessa conscientização. Como fazer para Ricardo II de Vilar o mesmo figurino que para Ricardo II de Gérard Philipe? Eu mudo tudo quando muda o elenco..." (citado por Hélène Parmelin, em Cinq peintres et le théâtre, pg.89).
O figurino, por outro lado, exalta a teatralidade dos corpos, especialmente no âmbito do teatro atual que procura se livrar da pressão do mimetismo. Convém lembrar os espantosos figurinos com que Victor Garcia, em 1970, vestiu As criadas, de Genet. Estranhos coturnos que lembravam ao mesmo tempo o calçado ortopédico e a bota erótica, desequilibravam, davam peso à silhueta e ao andar das atrizes, de modo que não se podia mais dizer se elas tinham fugido de algum cabaré sórdido ou da cena trágica!
São estas possibilidades quase infinitas de alteração da imagem, de caracterização do personagem, que interessam à arte do ator. Não é que ele precise de roupas muito elaboradas. A rigor basta-lhe um traje cuidadosamente escolhido para suscitar, graças à "colaboração" do espectador, a realidade completa do personagem e seu modo de vestir. Mas esta definição elíptica e metonímica do figurino de teatro não equivale a uma recusa do figurino enquanto tal. Ela provém de uma escolha estética, da vontade de utilizar a capacidade de imaginação do espectador.
É certo que o corpo sempre foi o próprio suporte do jogo teatral, e seria simplista, neste sentido, opor as luzes atuais às trevas anteriores. A evolução deve ser caracterizada menos grosseiramente. O corpo, hoje em dia, tornou-se o objeto de saberes e práticas sistemáticas. Certamente, outrora, percebia-se intuitivamente a sua "presença". Admirava-se o seu poder expressivo através das interpretações de atores como Talma, Rachel, Mounet-Sully. Entretanto, a depreciação que lhe impôs a moral dominante e os limites do saber antropológico impediam sem dúvida o ator de afirmar e explorar todos os recursos.
A influência do cinema, que costuma jogar de bom grado com a presença-ausência do corpo-imagem, foi determinante. E o surgimento de novas mídias em que o ator está envolvido (rádio, televisão, vídeo) terá precipitado e generalizado uma tomada de consciência: a corporalidade constitui uma dimensão essencial de toda arte do espetáculo. Ela fundamenta a especificidade. Logo, a transferência radiofônica ou cinematográfica de uma obra dramática anula na totalidade ou em parte esta corporalidade. Ao mesmo tempo, é o caso de indagar se ela não anula simplesmente o teatro.
Em suma, ao longo do século, mais especificamente nos últimos 30 anos, observa-se que a revalorização do corpo desencadeia um grande número de pesquisas teatrais. Simultaneamente, descobre-se (ou reavalia-se) formas - commedia dell'arte, pantomina, números de clowns, music-hall etc. - que se apóiam, antes de mais nada, na representação corporal. A dança moderna, a comédia musical americana se tornam, do mesmo modo, pólos de referência às vezes idealizados pela nostalgia. E maravilhamo-nos diante da corporalidade específica das tradições do Extremo Oriente.
Assim o corpo do ator passou a ser objeto de reflexão e de saber. E também de experimentação. Seus poderes tornam-se explícitos. Observa-se seu papel nos fenômenos bem conhecidos de "presença" e de "projeção". Reconhece-se que ele é um fator determinante do envolvimento do espectador e da intensidade da relação teatral; que, num outro plano, o corpo veicula uma palavra complexa e permite que venha à tona um sentido ambíguo, impossível de ser formulado. Graças a ele, a arte do ator vira uma polifonia. Ele é parte integrante da perpétua renovação interpretativa que faz a própria vida do teatro.

4- O corpo-imagem. No cinema, o corpo estabelece uma forma completamente diferente de relação com o espectador. Sendo uma imagem, ele está fisicamente "ausente", por mais forte que possa ser a sua presença na tela. Engano, ilusão... Pois este corpo se é ausente, irreal, é ao mesmo tempo valorizado, exaltado, pelos efeitos de filmagem e edição. Paradoxo da "presença-ausência", aqui levado à sua máxima tensão.

Esse corpo-imagem é explodido e fetichizado. Vale dizer que ele se presta, complacentemente, a todas as fantasias, a todos os fantasmas. Oferece-se ao olhar de mil formas diferentes, mutantes, na medida em que, como dissemos, o olhar do espectador é dirigido pelo "olho" da câmera.
A proximidade proporcionada pelos efeitos de filmagem transforma, em comparação com o teatro, a própria natureza deste corpo. A menor transpiração, algumas rugas... tudo pode virar signo e meio de expressão. Pode-se, aliás, dizer o mesmo dos menores detalhes da roupa que, exibidos pela câmera, se tornam prolongamentos sugestivos do corpo, e logo instrumentos de trabalho do ator.
Enfim, o corpo cinematográfico insere-se num outro modo de relação com o espaço. No cinema, o espaço é autônomo. Não se pede ao ator para sugeri-lo por diversos artifícios, nem ao espectador que o imagine a partir de alguns sinais sugestivos. Esta autonomia amplifica e altera as capacidades expressivas do corpo: a grande cena erótica de A um passo da eternidade mostra os corpos de dois amantes rolando, abraçados, na areia molhada da praia, envoltos pela espuma das ondas que rebentam... Está claro que o erotismo da cena emana de uma fusão da sensualidade dos corpos despidos e de um símbolo fortemente conotativo proveniente da natureza ambiente: fluxo e refluxo de água, efeitos de submersão, espuma fervilhante... O teatro deveria proceder de maneira bem diferente. Não podendo mostrar tudo isso, ele sugeriria. Quer dizer, os atores teriam a tarefa de exprimir a sensualidade dos seus personagens, e, simultaneamente, por seus movimentos, criar este espaço erotizado.
Existe, então, como que uma presença específica do corpo no cinema, uma pura singularidade, uma aura natural do ator que o torna insubstituível e inimitável. Foi em cima desta presença que o cinema construiu o famoso star system, pelo qual um ator, ou antes, sua amplificação em forma de imagem, atua como um imã sobre a multidão. A star é antes de tudo uma corporalidade intransferível. Ninguém confunde Rita Hayworth com Ava Gardner ou Marilyn Monroe, por mais que todas elas tenham simbolizado o glamour ou o sex appeal hollywoodianos. Sem dúvida, a mesma observação valeria também para aqueles atores cujo status não se baseia numa relação erótica com o público (mas a relação nem por isso deixa de ser obscura e inconsciente). Uma certa corporalidade não é menos determinante no sucesso alcançado por um Erich von Stroheim ou Michel Simon, entre mil outros.
Mesmo assim, ainda que o cinema tenha possibilidades quase ilimitadas de metamorfose graças às proezas dos técnicos, da maquiagem ou da trucagem, é o ator de teatro que faz da transformação do seu corpo uma arte. Tudo se passa como se o ator de cinema fosse mais ou menos dependente de uma imagem física através da qual ele se impõe, como se devesse sustentar esse sonho de juventude imortal que ele assume para cada espectador. Raramente se viu, na tela, um Paul Newman ou um Alain Delon representarem velhos horrorosos! Além disso, o paradoxo talvez se explique da seguinte maneira: no teatro, a metamorfose provém de um virtuosismo do indivíduo ao qual o espectador é imediatamente sensível. No cinema, ela pertence ao domínio da façanha técnica, que a repetição logo se encarregou de banalizar. Enfim, como já dissemos, o código do "natural" é muito mais opressivo no cinema: não basta imitar, sugerir, é preciso "ser". Um ator mais velho que seu personagem não terá credibilidade na tela; e a troco de que pedir a um galã que represente um velho? Existe um número suficiente de velhotes entre os atores disponíveis! No cinema, a presença específica do corpo se sobrepõe a qualquer arte de composição.