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A Arte do Ator


INTRODUÇÃO

Da arte do ator, sabe-se muito e pouco. Muito, na medida em que, por motivos de ordem psicológica e sociológica que fogem ao alcance deste estudo, o ator foi durante muito tempo objeto de fascinação e até mesmo de idolatria social. O ator parece pertencer a um universo mágico. O seu lugar é o "outro lado do espelho". No sonho coletivo, o monstro sagrado, a diva e depois astar vieram naturalmente substituir os deuses e as feiticeiras, as figuras e os mitos que não poderiam se adaptar aos tempos modernos. Falou-se muito, escreveu-se muito sobre os atores, mas raramente sobre a sua arte propriamente dita.
O que se sabe a respeito é, portanto pouca coisa, considerando o caráter quase sempre anedótico ou hagiográfico da literatura que se ocupa do ator. Pouca coisa também porque, até recentemente, pelo menos, ele pouco escreveu sobre si mesmo. Falta de interesse ou de aptidão? Inibição? Afinal de contas, há pouco mais de trinta anos, Jouvet externava o mais negro pessimismo:
"O que ele [o ator] diz então sobre a sua profissão, sobre os autores que ele interpreta, sobre os seus papéis, sobre ele mesmo, é marcado por uma espantosa estupidez, por uma espécie de baixeza ou de vulgaridade, ou pelo menos de ignorância. O que ele pode é contar a sua própria vida. É sórdido" {Témoignages sur le théâtre, pg.13).
As coisas mudaram sensivelmente desde o fim do século passado. O diretor é muitas vezes um ator (e às vezes, que ator!). Ocupa, pois, um posto de observação privilegiado. Ao mesmo tempo teórico e prático. Daí o interesse dos seus escritos, sejam eles de polêmica ou de reflexão: definem a grandeza e os limites de uma arte, denunciam suas complacências e suas trucagens, traçam um ideal que as gerações seguintes se esforçarão por realizar.
E, assim mesmo, sabe-se pouco sobre o ator. Pois, comparado aos outros artistas, ele sofre de uma desvantagem insuperável: a sua obra é efêmera. Posso ler, hoje, a Fedra que Racine escreveu em 1677, mas nunca poderei ver Rachel ou Sarah Bernhardt no papel-título. Um estudo da arte do ator é necessariamente de segunda mão. De Rachel, jamais saberei nada além daquilo que me contam Musset, Théophile Gautier, Juies Janin e alguns outros. Poderei contemplar suas fotos amareladas... Eis tudo! Mais tarde um pouco, disporei de documentos em discos ou filmes. Mas sabemos quão imperfeitamente eles nos dão conta da realidade do teatro. Veja, por exemplo, Maria Casarès interpretando Lady Macbeth, em frente à muralha de Avignon, e ouça depois a gravação, veja o documento filmado que foi realizado in loco: é a mesma voz, o mesmo rosto, o mesmo olhar. Mas é tudo completamente diferente... Se a evolução do gesto e das técnicas de interpretação ficar evidente, o mal-estar se transformará em estupor: como é possível compreender a admiração de Proust e dos seus contemporâneos por Sarah Bernhardt se levarmos em consideração os documentos sonoros ou filmados que dela ficaram?
Estamos evidentemente mais bem aparelhados para o estudo do teatro recente, graças à multiplicação dos depoimentos de toda ordem e à crescente qualidade de tais documentos: de modo geral, a partir de 1880, aproximadamente, quando a problemática da direção começa a ser globalmente considerada, multiplicam-se reflexões teóricas, tratados relativos à técnica do ator e, um pouco mais tarde, teses acadêmicas que fundam um estudo diacrônico da prática do teatro...
O problema, no caso, se complica com o entrecruzar de influências múltiplas (mais numerosas e mais variadas, ao que parece, do que no campo da literatura ou da pintura): a dos teóricos que quase não puderam pôr em prática as suas idéias, idéias estas que irrigarão, um pouco mais tarde, toda a renovação do palco - a de Craig ou de Artaud, por exemplo; a das práticas estrangeiras, multiplicada pela crescente facilidade das viagens, dos intercâmbios: Craig dirige Hamlet em Moscou; Stanislavski e seu grupo cruzam a Europa e a América... O Berliner Ensemble se apresenta em Paris em diversas oportunidades, da mesma forma que o Piccolo Teatro de Milão, onde Patrice Chéreau dirige vários espetáculos. Os poderes públicos, nem sempre desinteressadamente, favorecem a circulação e o encontro dos homens e das obras - Teatro das Nações, festivais diversos (Avignon, Nancy, Paris, Munique etc.).
É neste contexto que devemos definir a economia e os limites da presente obra. O seu propósito consiste em caracterizar a arte do ator de hoje (os anos 80) em sua diversidade. Pretende ser, para usar uma palavra em moda, "sincrônica". Nesse campo, porém, a própria noção de sincronismo é difícil de fixar. A prática contemporânea se alimenta das pesquisas de ontem. Em Nova York, o Actors' Studio perpetua e renova o famoso "Método" de Stanislavski. Nos anos 60, o Living Theatre deixava consignada sua dívida para com Artaud. E, pelos motivos acima mencionados, não seria pertinente pretender definir uma arte do ator na França sem sequer aludir a todas essas práticas estrangeiras que repercutem nele, nem que seja apenas por intermédio do diretor: em essência ou por escola, o ator francês não é "brechtiano"; mas sob a batuta de um Roger Planchon ou de um Bernard Sobel, ele poderá vir a sê-lo...
Ao contrário do trabalho do escritor ou do pintor, o do ator faz parte de um processo de criação coletiva: é por isso que as gerações não param de se interpenetrar no teatro. Torna-se, portanto inevitável dar uma definição empírica dessa noção de sincronismo, de modo a cobrir a arte de uma geração, sem isolá-la artificialmente das gerações que a precederam. Esta é a razão pela qual os trinta anos que começam no imediato pós-guerra (os anos 50) para chegar aos nossos dias vão constituir o terreno privilegiado deste estudo. Aliás, do ponto de vista da história do teatro, a escolha
desse período justifica-se plenamente: os grandes diretores que haviam dominado o teatro francês entre as duas guerras desapareceram todos. Vilar funda, em 1947, o Festival de Avignon; em 1951, ele assume a direção do TNP (Théâtre National Populaire), Trata-se, realmente, de um fim e de um começo. Durante os anos 50, a cortina se abre sobre uma nova época do nosso teatro. Época aberta, “in progress”, na medida em que ainda é prematuro afirmar se os anos 80 constituem um fim, um começo ou uma passagem... Não seria possível pintar um panorama histórico contínuo. Problema de espaço!... Mas pareceu útil esclarecer o nosso presente com incursões sistemáticas no passado do teatro. Como, por exemplo, evocar a representação "com máscara" de hoje em dia sem se referir à commedia dell’arte? Queremos salientar também uma distorção inevitável: se considerarmos a arte do ator sob o ângulo estatístico, constatamos que, no essencial, a prática dominante ainda é regida por uma ideologia do "natural", da verdade psicológica, e por um sistema de artifícios herdados da famosa tradição, perpetuados pela rotina de uns (os atores) e outros (o público): a aceleração do tempo de representação, a histerização da dicção, o exagero gestual ou mímico, tudo isso ainda agrada demais em muitos palcos, do Boulevard à Comédie-Française! Que peso tem, em comparação com isso, as audácias teóricas de um Artaud, os Escritos de Brecht, de acesso freqüentemente difícil, as pesquisas de Grotowski, que apenas alguns felizes eleitos puderam conhecer diretamente? Sob esse ponto de vista estatístico, seu peso é sem dúvida insignificante. Mas talvez esse não seja o ponto de vista mais correto. De qualquer modo, não é o único. Pois não se poderia falar do ator de hoje sem insistir nas idéias e práticas que, de forma subterrânea, trabalham e transformam pouco a pouco a arte do ator. Se, atualmente, ela é mais diversa, mais complexa do que há trinta anos, é devido a esse fenômeno de irrigação. Falar do ator de hoje é evocar o intérprete de ontem, mas é também, esperamos, desenhara silhueta do ator de amanhã...
Teria sido igualmente necessário levar em consideração práticas que não pertencem à esfera do teatro. O Théatre du Solei!, com Ariane Mnouchkine, pode realizar uma arte da citação - do circo {Les Clowns, 1789); da commedia dell'arte (L'Age D'or); das dramaturgias japonesas (Ricardo II) ou indianas {Noite de reis), sem sair do universo do palco. Mas, hoje em dia, a arte do ator é igualmente determinada por outros fatores. O cinema, e mais tarde a televisão, introduziram na relação do ator com o espectador uma dimensão de proximidade e de variabilidade, do plano geral ao dose, que enfatizam o poder expressivo do detalhe (o frêmito da mão, o bater dos cílios etc.) e, com isso, transtornaram a ideologia do natural de que falávamos: o "nosso" natural não é mais, com certeza, o de Diderot nem o de Stendhal. A familiaridade com esses novos meios de expressão transformou literalmente o olhar do espectador, um sistema implícito de exigências que o ator não pode se permitir ignorar. Daí uma mutação simultânea das técnicas de interpretação e dos valores estéticos. Ampliando mais ainda, não há de ser por acaso que as pesquisas de Grotowski sobre o ator coincidem com uma expansão da psicanálise, e a valorização do corpo que informa as práticas sociais, no Ocidente, repercute sobre a própria arte do ator de hoje. É próprio do ator ser ao mesmo tempo um e múltiplo. Ele dá a cada um dos seus papéis a sua própria "grife", ao mesmo tempo, se metamorfoseia de acordo com o que cada um desses papéis exige. Ele também é um e múltiplo por seus instrumentos de expressão: ele pode utilizar, simultaneamente ou um após o outro, os recursos da sua voz, do seu rosto, do seu gesto... E no entanto a sua interpretação é (em princípio) coerente, unificada. O ator é como uma orquestra de que ele seria ao mesmo tempo maestro! Torna-se pois um tanto arbitrário evocar sucessivamente os diversos "utensílios" do ator. Mas a preocupação com a clareza discursiva tornou esse arbítrio mais ou menos inevitável. Dito isso, nos restaria repensar e, se possível, desmentir o ceticismo de um ilustre profissional acerca de um empreendimento como, este:
"A literatura sobre o ator, proclamava Jouvet, é tanto mais estéril quanto se propõe a fixar o que não tem nem fundamento nem verdade, o fundo do seu estudo sendo o ilusório ou a ilusão" (op. c/í., p. 218).